Cada linha do texto de "Os Descendentes" faz com que você pense. Não são apenas as inteligentes metáforas sobre vida em família que chamam a atenção, mas também as reações descritas, cheias de emoção, de ironias e cumplicidade, sentimentos reais que fazem parte de cada um de nós.
Matt King (George Clooney) não é como um de nós. Ele é o descendente de uma linhagem real, o herdeiro havaiano de um paraíso tropical avaliado em, provavelmente, bilhões de dólares, uma grana alta que tiraria até mesmo os amigos de seus primos da miséria. Mas uma decisão assim sempre acarreta responsabilidades enormes, e cabe a ele assinar o bendito contrato que sede um pedaço do céu na Terra ao mais puro capitalismo selvagem.
No entanto, os pensamentos de King estão distantes desta decisão cabal. Sua mulher Elizabeth (Patricia Hastie) está no hospital. Ela caiu de uma lancha a motor e bateu forte com a cabeça, uma situação muito grave. Emocionado, o marido chega a perguntar ao corpo inerte da esposa se aquilo é uma atitude exibicionista, pois as coisas não andavam bem entre eles, King já não era o único homem da relação. Perturbado por está revelação de caráter inimaginável da mulher, ele parte em uma estranha busca. Talvez o objetivo seja sua própria redenção diante dos erros do passado, mas, para ele, todos tem o direito de se despedir de Elizabeth, até mesmo o outro.
"Os Descendentes" obviamente mereceu o Oscar de melhor roteiro adaptado. A criativa história, baseada na obra de Kaui Hart Hemmings, foi lapidada no formato de um roteiro próximo da perfeição, sendo os créditos deste feito destinados a Nat Faxon, Jim Rash e ao diretor Alexander Payne. Temos personagens reais, diante de decisões cruciais, agindo instintivamente, errando e aprendendo, sofrendo e se encontrando. O tema principal, como o próprio nome já revela, é família, um bem precioso que em alguns momentos parece ser rifado por uma aventura qualquer, ou pior ainda, esquecido por debaixo de uma rotina enfadonha e cansativa. Antes de resolver a situação de seu paraíso particular, King precisaria se resolver como pai, se reconectar com as filhas, que a muito não lidava de forma honesta. É a mais pura redenção pessoal, algo muito válido de se abordar.
A direção de Payne é simples e clássica. Suas cenas são instigantes, seu andamento (como de costume) é sereno, produção e figurinos perfeitos. A atenção aos detalhes é recompensadora quando vemos pessoas sem maquiagem, ou pelo menos maquiados como se não estivessem. Cabelos desgrenhados, espinhas, isso sim é realidade. Mas são os personagens o grande destaque, e consequentemente as atuações. George Clooney prova ser um homem real e não apenas um protótipo de galã, como a mídia teima em tentar caracterizá-lo. Sua interpretação de mil palavras e sentimentos poderia ter sido mais ouvida no Oscar. No Globo de Ouro ele venceu, assim como a fita, que levou o prêmio de melhor filme dramático.
A bela jovem Shailene Woodley, que vive a filha problemática Alexandra, consegue conquistar o público com sua simpatia. Já a irmã mais nova Scottie é interpretada com extrema eficiência por Amara Miller, uma excelente atriz mirim. Nick Krause também faz um bom trabalho com Sid, um jovem de idade mental baixa, mas ao mesmo tempo um cara livre de qualquer tipo de perturbação, sendo autêntico e amigável acima de tudo. E por fim, Robert Forster faz uma ótima participação como o sogro linha dura Scott Thorson.
A trilha sonora é um personagem importante do longa. A temática havaiana, hora emotiva, pop, ou de raiz, deveria ser usada com mais frequência em Hollywood, em qualquer lugar, pois serve perfeitamente a seus propósitos.
No final, "Os Descendentes" é um grande filme. Seus méritos vão além das qualidades técnicas, invadindo o campo das concepções de vida. O retrato da família de King nos serve de exemplo, demonstra como em muitos casos somos privilegiados e nem percebemos. Na verdade, em alguns momentos nos esquecemos, talvez sem intenção ou por alguma decepção, mas é quando um dos elos se rompe que tudo faz novamente sentindo, aquela lembrança retorna de maneira nostálgica, e mesmo sabendo que nada mais será como antes, uma luta por algo novo é sempre válida, algo que possa se manter. Isso é família, no mais literal sentido da palavra.
Veja o trailer:
Os Descendentes/ The Descendants: EUA/ 2011/ 115 min/ Direção: Alexander Payne/ Elenco: George Clooney, Shailene Woodley, Amara Miller, Nick Krause, Beau Bridges, Robert Forster, Matthew Lillard, Judy Greer