Como todos sabem, a trajetória de Stanley Kubrick é grandiosa demais para ser apenas contada. Isso seria muito pouco. Talvez uma película elaborada fosse capaz de descrever a singularidade deste mestre da sétima arte, algo que fugisse das limitações da vida real, pois afinal, um filme deve capturar a "foto da foto da realidade" - como ele mesmo dizia -, ou seja: é preciso enquadrar melhor o cenário, torná-lo simétrico, valorizá-lo, o deixando justo e belo. Apenas com uma obra assim, milimetricamente elaborada, esta lenda poderia chegar perto de ser compreendida.
No entanto, em termos documentais, podemos dizer que "Stanley Kubrick: A Life in Pictures" é um trabalho eficiente, que oferta uma "didática" e minuciosa leitura de todos os passos dados pelo diretor falecido em sete de março de 1999. A fita foi dirigida com dignidade por Jan Harlan, produtor executivo dos filmes "Barry Lyndon", "O Iluminado", "Nascido Para Matar", "De Olhos Bem Fechados", "A.I. Inteligência Artificial", e que também conduziu "O Lucky Malcolm!", documentário sobre a vida e carreira de Malcolm McDowell (vulgo Alex).
De maneira celebrativa, acompanhamos então uma análise aprofundada da trajetória de Kubrick, seus valores como pessoa e também como um dos maiores revolucionários que o cinema mundial já teve o prazer de acompanhar. O imenso arquivo de fotos e vídeos caseiros, todos realizados no seio da família Kubrick, com certeza trazem muita luz sobre a personalidade diferenciada deste homem que, no fim de sua vida, foi tachado pela mídia como estranho, recluso ou mesmo "maluco". A produção nos revela que o americano de família rica (seus pais tinham casa própria e até mesmo uma vídeo câmera) era sim uma pessoa extremamente difícil, mas esta, por sua vez, se mostrava sua principal qualidade – vale ressaltar que ele também era considerado um sujeito muito amável, quando não buscava avidamente a perfeição em qualquer aspecto de sua existência.
E completando esta solidificação da imagem inspiradora de Kubrick, ícones do cinema atual explicam a importância das obras do cineasta, tanto para a história do mundo como para suas próprias inclinações pessoais. É definitivamente enriquecedor ver e ouvir Martin Scorsese narrando o impacto do realismo visceral (e inédito para ele, até aquela ocasião) de "Glória Feita de Sangue", da beleza proibida e simbólica de "Lolita" nos anos 60, ou então se surpreender com Woody Allen confessando que não gostou de "2001 - Uma Odisseia no Espaço" quando o viu pela primeira, sendo que, somente tempos depois, absorveu a proposta ofertada pelo autor, compreendendo então como Kubrick estava anos luz a frente de sua concepção de cinema como arte e entretenimento.
E junto a esses dois grandes nomes temos ainda: Arthur C. Clarke, Steven Spielberg, Sydney Pollack, Jack Nicholson (sempre um destaque), Malcolm McDowell, Alan Parker, Shelley Duvall, Nicole Kidman, Tom Cruise (que também narra o documentário), e os importantes relatos de Christiane Kubrick, mulher do diretor - ambos se conheceram nos sets de "Glória Feita de Sangue", em que Christiane participa da tocante última cena.
Revelando a trajetória e segredos do mestre
A montagem de "Stanley Kubrick: A Life in Pictures" é realmente digna de aplausos, pois amarra com perfeição toda a evolução do cineasta, intercalando fotos raras com diversos depoimentos e cenas dos filmes que naquele momento são dissecados. É incrível perceber o desenvolvimento de Kubrick, que foi de um garoto animado e extrovertido a um jovem calmo e de palavras brandas (mas sempre enfáticas). Após perceber que a escola não lhe interessava, o mesmo se tornou fotógrafo, e com apenas 16 anos alcançou o profissionalismo com a icônica foto do "jornaleiro de luto", um símbolo do lamento da nação americana diante da morte de Franklin D. Roosevelt.
Imediatamente o pequeno prodígio conseguiu um emprego na revista "Look", passando então a registrar muitos eventos e nos mais diferentes ambientes - em especial alguns shows de jazz, todos em boates escuras e mal iluminadas. Esta experiência jornalística foi fundamental para que o jovem se tornasse um mestre da iluminação, seu grande diferencial no início da carreira no cinema – carreira esta que viria a ser primeiramente notada com a "Morte Passou Perto".
Porém, foi após "O Grande Golpe", trabalho de pouco retorno financeiro, mas contundente reconhecimento da crítica, que Kubrick conseguiu a direção de "Glória Feita de Sangue", em que trabalhou com o astro Kirk Douglas. Esta parceria renderia, três anos depois, o presente (de grego?) chamado "Spartacus". Apesar dos problemas do diretor com a fita - quase todos relacionados ao controle autoral -, foi com ela que Kubrick se tornou um cineasta que não mais seguiria regras de estúdios. Começava então sua fase mais prolífera em termos de qualidade e transgressões cinematográficas.
O fato é que o trabalho de Kubrick sempre caminhou em paralelo às mudanças históricas de nossa sociedade, mas ele fazia questão de correr na frente de tudo - é por isso que suas produções dividiam opiniões de maneira brutal. Ninguém estava plenamente preparado para a sensualidade de "Lolita", para o humor anárquico e insano de "Dr. Fantástico", a surrealidade rebuscada de "2001 - Uma Odisseia no Espaço", ou a ultra-violência de "Laranja Mecânica".
O diretor sempre teve a óbvia intenção de proporcionar discussão com suas produções, e seu sucesso neste quesito foi absoluto - ele hoje é praticamente o nome mais significativo em diversos temas importantes como guerra, sexualidade, ficção cientifica, casamento e violência. Com seus filmes, Kubrick ajudou a moldar tudo que havia ao seu redor, e fez isso de forma sem precedentes - mas sua onipresença acarretaria problemas muito sérios. O documentário aborda com clareza como a sociedade foi fortemente influenciada por Kubrick, e como muitas vezes certa "reação espontânea" fugia ao controle de todos, caminhando distante da mensagem do autor.
Um dos exemplos desta influência direcionada para um lado negativo foi o impacto de "Laranja Mecânica” na Inglaterra. Diversos crimes e assassinatos foram imediatamente catalogados como um resultado direto do longa. Tudo que acontecia, ia parar na conta de Alex e sua trupe de drugues. O diretor começou a receber ameaças de morte, e preocupado com o bem estar da família pediu para a Warner Bros retirar o filme dos cinemas do país - isso poucas semanas após seu lançamento. O estúdio acatou a decisão, algo que demonstrou o poder de Kubrick perante seus empregadores – é importante ressaltar que esta foi uma sábia decisão da Warner, pois mesmo com a fuga de "Laranja Mecânica" dos cinemas, a produção, inspirada no livro de Anthony Burgess, foi a segunda maior bilheteria de todos os tempos da empresa (naquela época), perdendo apenas para "My Fair Lady".
"A Life in Pictures" explora também os motivos da não realização de duas obras de Kubrick. Primeiramente havia o roteiro sobre Napoleão Bonaparte - figura pela qual o diretor possuía muita admiração -, que não vingou devido ao lançamento de "Waterloo", fita de temática semelhante que não foi muito bem nas bilheterias, e os investidores acabaram recuando. O segundo foi "Aryan Papers", projeto que abordaria o holocausto judeu e que foi cancelado devido ao sucesso do recente "A Lista de Schindler", de Steven Spielberg. Vale mencionar que a esposa de Kubrick afirmou que o abandono deste último projeto foi algo positivo para o diretor, que se encontrava muito deprimido durante a preparação do texto. Ele dizia: "como descrever aquilo de forma realista, toda aquela dor?".
A questão técnica desenvolvida e alicerçada por Kubrick também é profundamente analisada, em especial o uso eficiente da música clássica. Foi devido a ele que as trilhas sonoras deixaram de ser um mero acompanhamento e se tornaram uma peça fundamental nos filmes. As composições reunidas em obras como "2001 - Uma Odisseia no Espaço", "Laranja Mecânica", "O Iluminado" e "De Olhos Bem Fechados" exemplificam bem a revolução orquestrada por ele. A excelência neste quesito se tornou um de seus artífices cruciais, do qual nunca abriria mão – durante a argumentação deste tema em particular, temos como destaque o lendário compositor György Ligeti (um dos preferidos de Kubrick) comentando o uso de suas canções nos longas. Entrevista de valor inestimável.
Além disso, obviamente, uma de suas maiores contribuições para a sétima arte foi a estruturação da ficção científica como conhecemos atualmente: virtuosa e visual. O resultado alcançado em "2001..." se mantém autêntico e profundamente relevante - e pensar que na época eles nem ao menos sabiam como era o planeta Terra visto do espaço. Kubrick, com o famoso autor Arthur C. Clarke com parceiro de roteiro, simplesmente deu vida a este gênero de maneira épica, filosofal e tecnicamente arrasadora. Ele ganhou um Oscar de efeitos especais pelo o trabalho, o único Oscar de sua carreira (fato que comprova como esta cerimônia de premiação pode ser uma instituição falida de tempos em tempos).
Em resumo: "Stanley Kubrick: A Life in Pictures" se revela um documentário necessário, pois diante da importância do cineasta, percebemos o quão ínfimas são os longas relacionadas a ele. Mas esta é uma grande produção não apenas por sua iniciativa, mas também por sua abordagem apaixonada, que investiga o intelecto de um homem singular, cujas batalhas internas não lhe permitiam algo menor do que a perfeição, mesmo que o tempo se tornasse mais lento no processo.
O documentário nos lembra, de forma saudosa, que Kubrick foi um imprescindível capítulo da história do cinema, um gênio de poucos filmes, mas que foram suficientes para torná-lo um sinônimo de excelência cinematográfica. No entanto, citando a conclusiva lógica do ator Tom Cruise, é realmente triste saber que “nunca mais haverá um novo longa de Stanley Kubrick”. Isso soa como uma sentença, de fato.
Este texto foi originalmente redigido para Revista Literatortura.
Stanley Kubrick: A Life in Pictures: EUA/ 2001/ 142 min/ Direção: Jan Harlan/ Elenco: Tom Cruise, Ken Adams, Brian Aldiss, Woody Allen, Steven Berkoff, Louis C. Blau, John Calley, Milena Canonero, Wendy Carlos, Arthur C. Clarke, Alex Cox, Allen Daviau, Keir Dullea, Shelley Duvall, Nicole Kidman, Anya Kubrick, Christiane Kubrick, Gert Kubrick, Katharina Kubrick, György Ligeti, Malcolm McDowell, Matthew Modine, Jack Nicholson, Alan PArker, Sydney Pollack, Richard Schickel, Martin Scorsese, Terry Semel, Steven Spielberg, Sybil Taylor, Douglas Trumbull, Vivian Kubrick