Apesar do poderoso universo de C.S. Lewis, este novo filme da franquia não apresenta nada de novo, e cada vez mais perdemos a fé nela.
A franquia “As Crônicas de Nárnia”, baseada no mundo criado por C.S. Lewis, nunca foi um êxito total. Atores sem experiência e produções claramente controladas sempre foram os agravantes desta máxima, juntamente é claro a difícil missão de transferir de forma respeitável as histórias dos livros para as telas. Nesta terceira parte, embarcamos no navio Peregrino da Alvorada, para agora explorar os oceanos de Nárnia e suas misteriosas ilhas. Mas esta viagem pode causar certo desconforto.
Tudo começa quando os irmãos Lúcia e Edmundo se encontram entediados na casa de seus tios, naquilo que deveriam ser férias. Para piorar tudo, além da guerra - que ainda perturba o sono dos ingleses -, tem o chato primo Eustáquio Scrubb (Scrubb que pode ser traduzido como Mísero). Irritante até no nome e sobrenome, o garoto gosta de infernizar seus primos sendo o anfitrião mais antipático possível. Mas o destino pregaria uma peça bastante disciplinar em Eustáquio. Ele e seus primos não esperavam, mas o belo quadro de um navio em águas turbulentas que ficava no quarto de hóspedes era uma janela para Nárnia, e para lá eles literalmente emergiram, a bordo da magnífica embarcação em forma de dragão.
Em meio a muitos protestos do mimado Eustáquio, o barco segue seu caminho rumo a uma missão de suma importância para Nárnia. Com o Rei Caspian no comando, a expedição precisa encontrar as sete espadas dos sete Lordes desaparecidos, e para isso terão de enfrentar seus piores pesadelos. O inimigo agora está na mente de cada um deles.
Aqueles que conhecem a obra original de C.S. Lewis perceberam mudanças claras na história. Ao invés de procurar Lordes eles essencialmente procuram espadas, e não se surpreenda se a Grande Névoa der as caras por aqui. Todas as mudanças foram feitas sob o argumento de “deixar o público cativado”, como se o texto original não fosse capaz do mesmo.
A direção do filme é de Michael Apted, britânico que tem extenso currículo, principalmente em produções para TV. Apesar de retratar belos momentos, quase todos alicerçados por maciços efeitos especiais, suas cenas em diversos momentos perdem o timing e acabam se tornando monótonas e maçantes. Parte da culpa está também no roteiro do trio Christopher Markus, Stephen McFeely e Michael Petroni, que praticamente até hoje só trabalharam na franquia. O humor é desconcertantemente sem graça e até mesmo bons personagens, como Eustáquio, acabam soando caricatos em excesso. Os dilemas de Lúcia, por exemplo, são trabalhados de forma superficial, como se fosse uma obrigação citá-los. Embates entre Caspian e Edmundo parecem pouco naturais. Mesmo toda a simbologia de fé e cristianismo está escassa. Sendo o segundo filme o mais contundente na abordagem de Aslam/Deus, neste, o tema fica renegado a poucos momentos finais.
Talvez a escolha de Dante Spinotti para dirigir a fotografia não tenha sido a mais acertada. Spinotti é um excelente profissional, que já trabalhou com perfeição para grandes diretores, sendo sua parceria mais produtiva com Michael Mann, com quem realizou “Inimigos Públicos”, “O Informante” e outros. Seu estilo de fotografia é incrível e diferenciado, onde com pouca iluminação, sua captação parece tão natural que se assemelha a uma câmera de mão de alta qualidade. Mesmo Mann, quando não trabalha com ele, costuma copiar seu estilo, por trazer um realismo intenso para cenas de tiroteios noturnos. No caso de Nárnia, todo esse realismo acabou não funcionando de forma adequada, e os garotos, vestidos com roupas pesadas e espalhafatosas, mais pareciam estar fantasiados do que propriamente vestidos. Uma película mais requintada e densa seria uma ótima solução neste caso.
Tendo a obrigação de segurar o papel principal do longa, a dupla Georgie Henley e Skandar Keynes, respectivamente Lúcia e Edmundo, fazem o que podem. Sendo atores iniciantes, que tem apenas a franquia Nárnia como background, suas interpretações deixam a desejar, faltando em certos momentos carisma em Skandar e mais flexibilidade em Georgie, que apesar de possuir um brilho próprio, precisa amadurecer como atriz. Ben Barnes está correto, mas não chama atenção com seu Caspian, sendo que o grande destaque é, querendo ou não, Will Poulter, como o pentelho Eustáquio. O ator mirim possui uma aparência tão inusitada que parece tirado de algum conto do desenhista Hergé, e seu entusiasmo é excepcional. Com o ótimo “O Filho de Rambow” no currículo, o garoto chama atenção, conseguindo captar o ar insuportável do personagem, e depois, obviamente, redimi-lo. Com certeza o melhor personagem, e mais bem trabalhado, é o rato Reepicheep, dublado pelo sempre excelente Simon Pegg. O pequeno espadachim se torna a babá de Eustáquio, e desta relação surgem as melhores piadas e os momentos mais dramáticos. Pegg desaparece na voz do pequeno guerreiro, e faz um trabalho competente.
“As Crônicas de Nárnia – A Viagem do Peregrino da Alvorada” tem seus bons momentos, com belas cenas computadorizadas e um final dramático de bom gosto. Mas todo o resto acaba se tornando um passeio cansativo, com cenas de ação pouco aproveitadas, embates psicológicos rasamente explorados, interpretações automáticas e roteiro equivocado. Infelizmente uma obra que não faz jus a seu criador C.S.Lewis.
As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada/ The Chronicles of Narnia: The Voyage of the Dawn Treader: Estados Unidos/ 2010/ 113 min/ Direção: Michael Apted/ Elenco: Georgie Henley, Skandar Keynes, Ben Barnes, Will Poulter, Gary Sweet, Tilda Swinton, Liam Neeson, Simon Pegg