Em 1973, Glasgow (Escócia) passava por um período árduo. A cidade possuía algumas das áreas mais pobres da Europa Ocidental, fato que culminou na formação de "cortiços" desprovidos de água aquecida, os banheiros eram coletivos e não havia coleta de lixo (devido a uma greve). Um plano de recolocação habitacional estava em andamento, sendo seu intuito principal a migração destas famílias para moradias mais dignas. É com este cenário caótico como pano de fundo - abarrotado de lixo, ratos mortos e doenças - que se inicia "Ratcatcher", filme visceral, que oferece um realismo cruel, perturbador e extremamente triste.
O centro da história da diretora e roteirista Lynne Ramsay ("Precisamos Falar Sobre o Kevin") é o garoto James. Seguindo o padrão de todos os seus "amigos", ele vem de um lar pobre. Seu pai (chamado apenas de Da - uma contração de "Dad", típica do local) tem problemas com bebida, mas ironicamente não é dos piores. Sua mãe (Ma) luta para cuidar dos filhos, tentando criá-los com as ferramentas que a vida lhe ofereceu até o momento - sem alguns dos recursos básicos para viver, fica difícil prover esclarecimento ou mesmo educação apropriada.
O roteiro pode parecer simples visto a distância, pois ele tem como foco principal evidenciar elementos que não estão em cena, mas sim no inconsciente de seus personagens: a agonia velada que estas crianças solitárias enfrentam, com olhares tristes (alguns perversos), cabeças tomadas por piolhos, sexualidade distorcida e falta de compreensão na forma de se relacionar com as pessoas.
James é como uma esponja, que absorve tudo de forma instintiva, perigosa. Quando um de seus amigos morre numa brincadeira da qual participava, em um rio imundo próximo da vizinhança, algo mais forte fica ressaltado em sua mente. Possuindo certa liberdade, visivelmente nociva, ele vaga pela cidade sozinho, e visita as almejadas casas vazias, destinadas aos "pobres". Seu único sonho (e de sua família também) é ter um novo lar, longe da imundice degradante e simbólica, cheia de ignorância... longe de um passado que ainda é presente.
As crianças do filme não poderiam ser mais reais, praticamente não-atores. O único profissional reconhecido da fita é Tommy Flanagan, nascido em Glasgow e famoso por seu "glaswegian smile" - uma cicatriz deixada por cortes feitos dos cantos da boca até as orelhas, aparentando assim uma espécie de "sorriso". Quando jovem ele foi atacado por brutamontes na saída de um pub.
Em resumo, "Ratcatcher" é algo aterrador. Seu início lento causa certa distância do público, como se fosse preciso intimidade para que sentimentos fossem revelados. No terceiro ato, todos estão permanentemente ligados a obra. Quando os créditos finais começam a subir, acompanhados pela trilha melancólica da experiente Rachel Portman ("As Filhas de Marvin"), e a imagem de James surge disforme ao fundo, tudo que fica é um vazio imenso, uma dor real causada pela impossibilidade de algo puro e necessário: os sonhos de uma criança.
PS: o trailer abaixo tenta despistar o clima pesado do filme.
Ratcatcher: Reino Unido, França/ 1999/ 94 min/ Direção: Lynne Ramsay/ Elenco: Tommy Flanagan, Mandy Matthews, William Eadie, Michelle Stewart, Lynne Ramsay Jr