A realidade aumentada de "Marcados para Morrer" nos faz entender melhor todo o drama e violência do serviço policial.
Quando um filme oferece a história de dois policias de rua (em Los Angeles ainda por cima), é quase certo que, além dos eternos conflitos raciais que eclodem no local, serão explorados temas como corrupção e soberba, males do poder que acompanham estes homens encarregados de manter nossa paz e tranquilidade - algo, por exemplo, muito bem delineado pelo factual "Rampart", que revela a verídica corrupção e truculência da polícia de Los Angeles na década de 90.
Pois bem, em "Marcados para Morrer" a história é diferente, o que acaba sendo uma ironia. Fugindo desta tradicional linha negativista da profissão, o longa apresenta dois policiais honestos, dedicados, afiados em seu ofício, heróis de verdade (um sinônimo para "malucos" também né)... ou seja, seres humanos comuns que possuem famílias, curtem dar risadas de seus problemas, mas que vez ou outra precisam enfrentar situações difíceis de serem esquecidas. Quem tem um camarada PM sabe bem do que estou falando.
O excelente texto gira em torno dos oficiais Brian Taylor e Mike Zavala. Ambos enfrentam a rotina policial com afinco, e se cometem irregularidades, elas são moralmente honestas (pelo menos do ponto de vista da ruas). Sem fugir a regra - algo praticamente impossível, pois esta é a realidade do cenário - todos aqueles conhecidos temas - como o aspecto familiar, o elo de amizade, a subordinação - são vivenciados na trama, mas tudo com muita personalidade e, principalmente, inovação.
Como foi citado, a questão racial é fortemente explorada. Primeiramente temos uma abordagem mais saudável do tema, que usa a relação dos parceiros como alicerce, demonstrando que os mesmos curtem tirar sarro de suas diferenças (Taylor é o americano branquelo típico e Zavala é o latino cheio de quinceañeras para comparecer).
É interessante perceber que a fita se esforça em deixar claro que sim, cada raça é extremamente diferente uma da outra, cada um tem seus costumes, alguns são ridículos e por aí vai... no entanto nada justifica um conflito, muito pelo contrário, o convívio entre culturas é extremamente enriquecedor.
Obviamente esta cadeia de raciocínio está longe de ser assimilada pelas gangues californianas (negros x latinos), que se odeiam do momento em que nascem até o que morrem. Estas comunidades são imensas na cidade em questão, e sofrem com preconceito e o estigma de inferioridade serviçal, algo enraizado que fundamenta o extremismo armado, cujo o resultado são emboscadas covardes e anônimas, que geram outras semelhantes. Um ciclo vicioso e mortal.
E com este cenário já pré-moldado, temos então o desenvolvimento dos personagens. A história, enquanto passeia por suas questões morais e humanistas, amarra uma investigação que acaba gerando complicações para os policiais. Eles não são detetives, mas ao exercerem indevidamente a função, esbarram em problemas perigosos - o nome em português (óbvio demais) meio que libera um spoiler dos tais problemas.
O diretor David Ayer conhece o tema profundamente. Ele roteirizou os famosos "Dia de Treinamento" e "S.W.A.T. - Comando Especial", além de ter dirigido o excelente "Tempos de Violência". Um dos pontos mais interessantes da direção de "Marcados para Morrer" é a opção de fazer com que seus personagens registrem a própria história (algo similar aos filmes "A Bruxa de Blair" ou "Poder Sem Limites").
Emulando então um documentário caseiro, filmado com câmeras portáteis, vemos os atores registrando suas cenas. Mas Ayer (sabiamente) não se prende a obrigatoriedades, e escolhe os ângulos que bem entende, mesmo que eles fujam de uma credibilidade supostamente exigida para o conceito. Com essa liberdade, temos pontos de vista quase no queixo de seus personagens, que podem revelar de maneira singular um punho vindo em sua direção.
Outro acerto é o elenco escolhido. Jake Gyllenhaal ("Donnie Darko") demonstra convicção com seu Brian Taylor. Apesar de sua aparência fria e calculista, o cara é um ser humano que aprecia e valoriza suas relações, fugindo dos esteriótipos que por vezes alienam tais indivíduos. Por ser um cara inteligente (ligado a todo o movimento online existente), é dele a ideia de documentar seu violento dia a dia.
Michael Peña segue a mesma linha de valores com seus Mike Zavala. No entanto, por ser latino, ele é definitivamente mais real, e consequentemente mais engraçado. Sua origem mais "sofrida" exponencia uma veracidade emblemática, corajosa e carregada de sentimentos. Um ótimo trabalho de Peña.
Como as companheiras dos amigos temos as ótimas Anna Kendrick ("50%") e Natalie Martinez, que interpretam Janet e Gabby, respectivamente.
Kendrick é uma excelente atriz em acensão, e sua personagem é um reflexo disso. Janet é a típica garota americana de classe média: bonita, inteligente, estudiosa, levemente egoísta, com suas egocentricidades latentes, mas, acima de tudo, uma pessoa adorável e de personalidade forte.
Já Gabby é a esposa latina, belíssima, engraçada, desbocada e de personalidade igualmente forte, algo capturado muito bem por Martinez. Apesar das descrições parecerem estereotipadas, o filme passa longe de tal pensamento. O fato é que estes são elementos culturalizados, e os EUA adora manter suas tradições.
(No time de coadjuvantes os destaques são Frank Grillo ("Guerreiro") e America Ferrera (da série americana "Ugly Betty").
No final: em "Marcados para Morrer" David Ayer dirige e roteiriza algo impactante e principalmente comovente. A carga dramática da obra é grandíssima, os personagens são muito bem humanizados e definitivamente conquistam a audiência.
A parte técnica investe em ideias criativas, utiliza iluminação natural corajosamente, opta por ângulos absurdos, e o resultado é primoroso - a cena inicial, em que vemos uma perseguição policial que tem como desfecho dois bandidos baleados, é sensacional, e já monta o clima visceral de ação do filme.
Todas as questões humanísticas são abordadas de maneira relevante, os atores estão em alta sintonia, o texto passeia por voice-overs inspirados até piadas infames, a violência é gráfica e o humor é inteligente. Altamente recomendado.
Marcados para Morrer/ End of Watch: EUA/ 2012/ 109 min/ Direção: David Ayer/ Elenco: Jake Gyllenhaal, Michael Peña, Natalie Martinez, Anna Kendrick, David Harbour, Frank Grillo, America Ferrera