Sob a Pele (Under The Skin)


#Vazio debaixo da máscara

Nada pode te preparar para a estranheza de Sob a Pele. Logo nos créditos iniciais, percebemos que a ficção científica, extremamente atípica, veio para confundir e não explicar. Emulando um conceito abstrato de imagens, adotado por tantos outros clássicos do gênero, vemos nesta abertura estranhas substancias tomando diferentes formas, líquidos viscosos sendo injetados e círculos se encaixando numa espécie de modelagem artificial. Tudo acompanhado por uma trilha sonora hipnotizante.

Este é o surgimento da personagem protagonista, que é basicamente uma peça substituta. Em seguida, já em modus operandi, se iniciam os procedimentos de integração da mesma, com exercícios básicos de civilidade e pesquisas de campo. Estes exercícios trabalham a adaptabilidade da mulher ao nossos costumes, como por exemplo, a capacidade de iniciar uma conversa com um estranho, no caso, um homem potencialmente interessado em relações sexuais. Para ela, essa é a principal regra social a ser dominada. Um critério no entanto é obrigatório para a consumação: quanto mais solitário o alvo, melhor. A autenticidade do flerte é importante, pois o homem precisa, de livre e espontânea vontade (mesmo que dominado por seus instintos), optar por ser consumido.



O tempo de durabilidade da peça substituta no entanto é curta. Algo inevitável, levando em consideração o realismo humano que é personificado. Uma profunda confusão existencial logo debilita a mulher, e a falta de julgamentos morais, necessária para a captação de recursos e cumprimento da demanda de consumo, se torna impossível. Ao compreender que não é uma mulher completa, ela racionaliza que esta fadada ao descarte. Seu período de uso já é provavelmente estipulado de fábrica.

Ok. Existem formas mais clara e resumidas para se descrever esta história, mas elas com certeza arruinariam toda a proposta de investigar a obra. Sob a Pele é basicamente uma experiência cognitiva, que não se parece em nada com uma produção tradicional. Os sentimentos trabalhados aqui não são prazerosos. Existem momentos de total crueldade e morbidez, e a falta de sentimento incomoda, por ser realista demais. Estranha demais.



O diretor e roteirista Jonathan Glazer sempre buscou alcançar extremos em sua carreira, tanto temáticos como narrativos. Veja por exemplo Sexy Beast, seu longa de estreia, que é basicamente uma ode brutal ao desconforto de se presenciar a submissão humana. No entanto, apesar da temática, foi a tensão narrativa criada na obra, e a interpretação arrasadora de Ben Kingsley como o mafioso Don Logan, que realmente se tornaram memoráveis. Em Sob a Pele, alguns podem dizer que Glazer evidenciou uma espécie de discurso em forma de analogia, que diferencia a relação de poder e submissão de homens e mulheres. Porém, acredito que, como autor, sua intenção mais pungente foi realizar um exercício narrativo desafiador. 

A história é bastante simples, analisando superficialmente. Existem pouquíssimos diálogos e nenhum personagem sequer tem nome. Mas é no simbolismo construido em torno dos personagens e suas motivações, que se encontra a força implacável do filme. A valorização das ideias e sentimentos do roteiro é feita com um brilhantismo praticamente inédito, com cenas talhadas de forma impecável, extremamente expontaneas. Nenhuma ideia é explícita, argumentos são abertos a diferentes interpretações. A ambientação é surreal e pessimista. Por mais arrastada que seja certa sequência, é a instigante improbabilidade do tema que mantém todos acessos.


O grande mérito do trabalho vai então para a perícia de  Glazer como diretor. O britânico consegue capturar o cotidiano e o bizarro com perfeição. Os atores locais de Glasgow, cidade escocesa em que tudo acontece, oferecem puro realismo com seus sotaques pesados e comportamentos rústicos. Em certos momentos, não fica claro se os coadjuvantes que passeiam pelas ruas são ficcionais ou reais. E novamente, a trilha sonora, basicamente alienígena, se revela um importante elemento de imersão.

A obra não é um desafio interpretativo para o elenco, mas é preciso saber valorizar a coragem da atriz Scarlett Johansson, que decidiu se envolver com a produção de baixo orçamento, aceitando até mesmo realizar algumas cenas de nu frontal. Seu carisma trabalha a favor, e sua participação se torna verdadeiramente importante para o resultado positivo da fita.

No final, Sob a Pele é um sci-fi formidável. Instigante, criativo e bizarro como nenhum outro já ousou ser. Não é complexo em demasia, nem simplesmente compreensível. Apesar de estar aberto a discussões morais, filosofais e tudo mais, é no quesito técnico narrativo que o trabalho se destaca. Para não dizer que o longa é isento de falhas, no terceiro ato existe uma pequena queda no andamento, mas que logo é atenuada pelo excelente desfecho, psicologicamente brutal. Para quem se arrisca, recomendado.





Sob a Pele/ Under The Skin: 2013/ Reino Unido, EUA, Suíça / 108 min/ Direção: Jonathan Glazer/ Elenco: Scarlett Johansson, Jeremy McWilliams, Lynsey Taylor Mackay, Paul Brannigan

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