Na sétima arte, retratar a morte de maneira realista é uma opção de inúmeras virtudes, mas obviamente de pouco alcance. Não existe glamour no realismo, não existe enfeite. O assassino, por mais experiente que seja, não possui a frieza calculada de um agente Bourne. A vítima, quando atacada, não tomba inerte automaticamente morta. Ela agoniza, estrebucha, uma cena digna de pena.
Autores que prezam por veracidade não buscam entreter sua audiência da mesma forma que, digamos, Sylvester Stallone, com seus famosos personagens matadores de exércitos. Quem explora a morte com naturalidade visa estarrecer, e "Blue Ruin" de fato é um filme estarrecedor.
A história nos apresenta a um desmazelado protagonista chamado Dwigth. Destroçado psicologicamente por traumas do passado, ele vive seus dias em uma espécie de purgatório, como se pagasse penitência antecipada por atos que viria a cometer. De olhar extremamente vazio e fala mansa (quase escassa), o jovem mendiga por ruas praianas, comendo o lixo dos outros e invadindo casas para se lavar.
Na verdade, o pobre coitado foi consumido por um desejo, e não restou muito dele depois disso. Dwight almeja vingança, pura e simplesmente - atitude condenada pela lei dos homens, mas que de forma velada é também digna de respeito. Após executar o plano, o mesmo precisa lidar com as consequências, pois seu direito de vingança valida o de outros. Aprendendo a matar e fugir de maneira grosseira - mas funcional -, Dwigth inconscientemente deposita o peso de seus atos nas costas de inocentes, e isso ele não pode permitir.
"Blue Ruin" foi dirigido por Jeremy Saulnier, novato que possui um talento especial para a fotografia. Neste quesito a obra oferece um conceito muito bem definido: enquadramentos se revelam sempre concisos e criativos, e a iluminação auspiciosa agrada aos olhos. Sua narrativa constrói cenas grandiosas, de ritmo eficiente e ambientação imersiva. Um trabalho técnico exemplar, medido com exatidão. A densa trilha sonora e a ótima cenografia também se destacam.
Já o roteiro fica gravado no inconsciente da audiência. A construção dos personagens é com certeza o ponto mais forte do trabalho. Como foi dito antes, não espere muita perícia do assassino protagonista. Em determinados momentos é quase hilário vê-lo executar seus planos. Como todo ser humano normal, ele eventualmente falha quando se encontra sobre pressão. Mas Dwight sabe se virar. Acima de tudo, ele tem colhões para agir sem arrependimentos, puxar o gatilho por assim dizer. No final isso faz toda a diferença.
O desconhecido ator Macon Blair (amigo de longa data do diretor) personifica um protagonista complexo, dono de uma duplicidade enorme. Ao mesmo tempo em que Dwight parece apático e inocente, percebemos também dentro dele uma raiva corrosiva, praticamente debilitante. Seu comportamento educado e formal é apenas um resquício de sua humanidade posterior, que fatidicamente já não existe mais.
O restante do elenco também chama atenção, em especial os atores Kevin Kolack e Devin Ratray. O primeiro interpreta o perigoso Teddy Cleland, sujeito pouco apegado a Dwight (vamos dizer somente isso). Já Ratray, ator de histórico voltado mais para comédias (vide "Nebraska"), dá vida ao amigo Ben Gaffeney, apreciador de Heavy Metal e entusiasta do armamento tático. Ele se torna peça fundamental na história do protagonista, e aproveita para inserir um pouco de humor na trama, mesmo que mórbido.
"Blue Ruin" é daqueles filmes que depois de finalizados continuam maquinando dentro de sua mente. É algo estarrecedor, que explora a violência humana em sua plenitude. A história, de contornos extremamente realistas, consegue racionalizar as motivações e situações que levaram um sujeito aparentemente normal a se tornar um assassino sem remorsos, capaz de matar com as próprias mãos. É a tristeza que leva a ruína.
Blue Ruin: 2013/ EUA/ 90 min/ Direção: Jeremy Saulnier/ Elenco: Macon Blair, Devin Ratray, Amy Hargreaves, Kevin Kolack, David W. Thompson