Birdman parece feito em um take só. Obviamente não é, mas o simples fato de parecer feito em um take só já é um desafio incalculável, orquestrado pelo exímio diretor Alejandro González Iñárritu. Não importa o quão improvável seja o trajeto e ação dos personagens, as lentes de Emmanuel Lubezki se esgueiram por corredores apertados ou mesmo flutuam de maneira inconcebível para captar todos os momentos, e o show sempre continua. Ironicamente, Alfonso Cuarón fez o mesmo com seu clássico sci-fi, Gravidade. Parece até que os amigos combinaram uma aposta: "Quem consegue mais prêmios com um filme de um take só?". Iñárritu ganhou com facilidade.
Poucas são as vezes que temos o privilégio de acompanhar algo tão bem executado como Birdman. O filme não é só arrasadoramente perfeito no quesito técnico, mas também possui um roteiro igualmente hipnotizante. O enredo é uma ode destrutiva ao sonho americano do estrelato e da fama. Toda a crueldade do ofício – que com a mesma facilidade que concede suas graças, também as tira – é explorada através de uma simbólica adaptação teatral da peça What We Talk About When We Talk About Love, do autor Raymond Carver. Nela, o protagonista, cansando de implorar pelo amor dos outros, decide se matar. Ele já não mais existia para ninguém, então porque continuar sem aplausos?
Quem realiza a peça é Riggan Thomson, um desacreditado ator que no passado arrecadou milhões com o blockbuster Birdman, filme de herói em que interpreta um homem-pássaro. Para ele, o personagem se tornou uma assombração, uma voz em sua mente, que constata apenas a verdade. Pressionado em todos os aspectos possíveis por esta ousada nova ideia (de uma celebridade hollywoodiana se aventurar no sagrado solo do teatro), Riggan dramaticamente se vê a beira de um abismo existencial. E agravando seu senso de responsabilidade, ele não consegue se relacionar com a filha Sam, que representa uma geração que nem mesmo se importa em se importar com a existência do homem-pássaro, muito menos quem o interpretava. O sujeito está quebrado, cansado e com medo. Está preso em uma espécie de pesadelo particular, onde coisas muito estranhas começam a acontecer, como sua raiva se tornar telecinética.
Diante disso, percebemos que o mais impressionante aspecto de Birdman é a monumental participação de Michael Keaton como o protagonista Riggan. Keaton, que se consagrou Batman a mais de 25 anos atrás, é o exemplo personificado de como um bom intérprete pode desaparecer na sombra de um personagem. Hoje este ciclo ironicamente está fechado. Respeitados astros, como Michael Fassbender por exemplo, convivem muito bem com suas personas heroicas. É algo que não mais afeta credibilidade ou mesmo carreiras. Hollywood se converteu, e é fácil entender o porquê. Mas para Keaton tudo foi bem diferente, e é por isso mesmo que em Birdman ele aposta sua própria história. É algo pessoal, que vai além do sonho do estrelato e da fama de que falei. É basicamente um desabafo. Ele arriscou tudo.
O sentimento de impotência que todos os personagens dividem, diante desse massacrante mercado de aparências, é totalmente honesto por que é algo próximo deles, na posição de atores interpretando atores. Todo o elenco oferece um trabalho impecável. Cada um deles possui pelo menos uma cena memorável no roteiro. A jovem e prolífera Emma Stone é destaque como a filha Sam, que dispara em certo momento um discurso brutalmente realista sobre a solidão e o medo que se abate sobre nossa sociedade moderna. Edward Norton também entrega um dos melhores trabalhos de sua carreira, como o mítico e inigualável ator dos palcos, Mike Shiner. É quase impossível decidir se você torce ou simplesmente despreza o cara. Neste mesmo nível de qualidade, vemos participações edificantes de nomes como Naomi Watts, Zach Galifianakis, Amy Ryan e Andrea Riseborough.
E lapidando a fita com precisão, temos o mexicano Iñárritu, aproveitando a liberdade como autor para transcender sua própria arte. A genialidade do roteiro é incomparável, assim como a atenção aos detalhes. Vemos pura inspiração, desde os créditos iniciais até a belíssima fotografia de Lubezki, da construção de uma enorme e ininterrupta cena, até a trilha sonora perseguidora do jazzista Antonio Sanchez – que mais parece uma linha de bateria improvisada (J.K. Simmons ficaria orgulhoso, ou não).
A sequência da Times Square, por exemplo, sintetiza muito bem o que foi gravar Birdman. Foram apenas quatro tomadas para cena toda. Não poderiam ocorrer atrasos, senão a luz estaria comprometida. Apenas quatro pessoas acompanharam Keaton na cena, Iñárritu foi uma delas, e durante a caminhada, ele fez um take separado com seu celular, que acabou sendo usado posteriormente no filme. Fora os poucos assistentes na multidão, todo o resto era é a Times Square a pleno vapor, pois ela não para.
Enfim, muito se falou sobre Boyhood merecer o Oscar de melhor filme, muito se falou sobre Birdman merecer também. Analisando imparcialmente, os dois filmes são opostos extremos. Um deles levou 12 anos para ser realizado, o outro foi simbolicamente conjurado em duas horas, "em tempo real". O elenco de um é formado em grande parte por não atores, o outro é um casting estrelar. A história de um é simples como vida, do outro, é complexa como a vida. No entanto, apesar de completamente diferentes, as duas obras são igualmente incríveis e importantes para o cinema, e escolher entre elas é simplesmente injusto, quase sem sentido na verdade. Por isso, Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) é mais que recomendado, é obrigatório!
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)/ Birdman: Or (The Unexpected Virtue of Ignorance): EUA/ 2014 / 119 min/ Direção: ALejandro González Iñárritu/ Elenco: MIchael Keaton, Emma Stone, Zach Galifianakis, Edward Norton, Naomi Watts, Andrea Riseborough