Um cenário desolado serve de pano de fundo para a mágica história de "Indomável Sonhadora".
Em um futuro (bem) próximo, o meio ambiente ruiu - conforme tantos especulavam. Com o derretimento dos polos, cidades foram engolidas pelas águas, fazendo com que a população recuasse e se entrincheirasse atrás de grandes muros.
E é nesta realidade distópica que vive Hushpuppy. A pequena garota já nasceu em condições adversas, e nunca vislumbrou o que era o mundo antes do começo de seu fim. Ela vive com o pai Wink no local batizado como A Banheira, que fica ao sul das cidades, longe do limite de segurança estipulado, do lado de fora dos grandes muros de contenção. Para a sociedade remanescente, estas pessoas são inferiores, problemáticas e passíveis de caridade... Já os mesmos se sentem livres.
Mas o preço da liberdade é alto, e a população desprovida de bens matérias sabe disso - ela se empenha a todo momento em apurar seu espírito de sobrevivência. A Banheira é um grande amontoado de lixo, empilhado por chuvas torrenciais e alagamentos, que são um constante temor em suas vidas, em especial da pequena Hushpuppy. A bebida é uma eterna e honesta companheira dos mais velhos, não existem médicos, escolas são improvisadas e a locomoção por áreas alagadas é difícil. Mesmo assim, como foi dito, eles são livres, sendo a altura da água a grande preocupação de suas vidas.
"A Indomável Sonhadora" não é um filme fácil. Seu ritmo lento e contemplativo se mostra distante dos grandes públicos, acostumados com algo mais palatável. O tom documental serve para transformar tudo em realidade, mesmo que fantasiosa. A câmera na mão, sempre em movimento, recorta cenas de maneira instigante, encontrando ângulos belíssimos e incomuns, repletos de luz na maior parte do tempo.
O diretor iniciante Benh Zeith oferece apenas reflexão com sua obra. Apesar da trilha sonora inspirada nos direcionar a um tom melancólico e dramático, o sentimento nunca se completa. Existe certa austeridade no filme, um contraste certamente irônico ao clima mágico estipulado. É realmente desagradável ver toda a sujeira em que estes seres humanos vivem, a forma precária com que se alimentam, a falta de educação e por aí vai. E é este incomodo o maior mérito de "Indomável Sonhadora", pois é ele que nos leva a tamanha reflexão.
A discussões propostas pela fita são muitas. Além desta criativa perspectiva, que desenha um provável início de final dos tempos, temos também o fator da separação de castas da sociedade, que pode ser relacionado a um problema muito conhecido do Brasil: as moradias irregulares em morros condenados. Fazendo uma referência com o que foi analisado, para a sociedade, estes indivíduos estão apenas errados, são motivo de escárnio e correm o risco de perder a vida a qualquer segundo. Já para eles, esta é a única opção digna de existência, pois ter um teto sobre a cabeça é algo importante. Fora dali eles viverão (e principalmente se sentirão) a margem da sociedade, sob viadutos, esquecidos e repudiados, e os mesmo que os julgaram, do conforto de suas amplas salas de estar, não ajudarão em nada.
O filme abre então esta discussão polêmica, que de longe pode ser catalogada como algo resumível a certo e errado. Vai muito além disso.
Outra interessante análise é o crescimento desta criança, que se vê livre de qualquer contato posterior com a humanidade como a conhecemos. Ela é um ser indomável, sem o conhecimento dos livros, mais munida de instintos elevados, filosofais e belos. É praticamente a heroica líder de uma nova raça, poderosa a sua maneira e beirando a extinção, assim como outros grandes seres dominantes que já habitaram nosso planeta.
O grande destaque de "Indomável Sonhadora" é sem dúvida a atriz mirim Quvenzhané Wallis (nome complicado hein?). Sua naturalidade é algo descomunal, e é o principal motivo de tudo parecer simplesmente realidade. Apesar de poucas falas, ela é a responsável por um tocante voice-over que, hora ou outra, expõe seus pensamentos distantes de nossa concepção, quase sempre pontuados por sentenças imperativas, um reflexo de sua existência movida a costumes e instintos de sobrevivência.
O roteiro de Lucy Alibar, em parceria com o diretor Zeitlin, traz simplicidade em sua estrutura, mas se torna complexo devido a ambientação geral. A trilha sonora de Dan Romer, também em parceria do diretor, é muito importante para o resultado final do longa, e emula em alguns momentos o feeling do contemplativo "A Árvore da Vida".
Em resumo: "Indomável Sonhadora" é um filme excepcional, que se movimenta por caminhos diferentes, que levam principalmente à reflexão dos problemas de nossa sociedade, com suas diferenças e injustiças, nos fazendo entender a motivação dos sonhos daqueles que aparentemente não tem nada com que sonhar, que já nasceram sem alternativas. Mas contrariando este senso comum, os mesmo são carregados de esperanças, pelo menos enquanto crianças.
A beleza da fotografia iluminada do longa se contrasta com a inquietação causada pela imundice dos ambientes, pela precariedade da vida de seus personagens. Existe certa piedade corrosiva ao qual somos obrigados a sentir, e assim, questionamos erroneamente "o que é melhor para eles?", sendo que a real questão é "o que eles acham melhor?"
Indomável Sonhadora/ Beasts of the Southern Wild: EUA/ 2012/ 93 min/ Direção: Benh Zeitlin/ Elenco: Ouvenzhané Wallis, Dwight Henry, Levy Easterly, Gina Montana, Lowell Landes