Depois de realizar o excepcional "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças", o francês Michel Gondy seguiu, de maneira apaixonada, com o tema "sonhos" - algo que se encaixa perfeitamente em seu estilo cinematográfico -, e produziu "Sonhando Acordado", seu mais contundente trabalho autoral, que dirige e roteiriza.
Na história acompanhamos um aprofundamento quase psíquico do criativo e excêntrico artista Stéphane Miroux, um cara deveras complicado e cheio de incertezas, que vive perdido entre o mundo real e o dos sonhos.
Após o mesmo conhecer a nova vizinha Stéphanie (praticamente uma xará), se inicia um engraçado e estranho ritual de conquista, cheio de reviravoltas improváveis, dolorosas e hilárias, assim como a vida real (algo que serve de contraste para os constantes sonhos da fita). Primeiro é Stéphane que está no controle da situação, sendo que, com o desenrolar da história, todos os poderes vão para as mãos de Stéphanie. Uma bagunça geral.
No entanto, o grande êxito da obra é sua linguagem, que oferece uma criatividade única em termos técnicos. Como já foi dito, Gondry é um apaixonado por trucagens, cujos resultados são sempre visualmente atraentes e diferenciados. É empregado então um ar mambembe a produção, algo emblematicamente circense.
Visto de forma enfática em algumas de suas obras - como "Natureza Quase Humana" e "Rebobine, Por Favor" -, o cara meio que aprimorou/desenvolveu um sistema de stop motion sem igual, e em "Sonhando Acordado" ele é usado a todo momento. São elaborados também esquemas rústicos de produção, como as chamas e correntes d'água feitas de celofane, bonecos de pano reais que ganham vida (literalmente), cenários, carros e armas feitas de papelão. Definitivamente uma marca registrada distinguível.
Também muito interessantes são as ideias criativas do roteiro, que tornam o universo da história algo mítico, por assim dizer: como a máquina especial que viaja apenas um segundo no tempo, ou os sonhos do protagonista que são apresentados em um programa "ao vivo", em que ele mistura numa panela todas as informações que estarão presentes em seus devaneios adormecidos. Elementos simples, mas ao mesmo tempo riquíssimos de significados e qualidades.
O elenco tem como destaque Gael Garcial Bernal, que encorpora muito bem o pirado e por vezes infantil Stéphane. Charlotte Gainsbourg foge um pouco de seus papéis dramáticos pesados (como visto em "Melancolia", de Lars Von Trier), surgindo encantadora como Stéphanie, uma mulher de aparência frágil, porém astuta e de personalidade forte. Temos ainda o experiente ator francês Alain Chabat, que interpreta o colega de trabalho tarado Guy, uma das bases cômicas do longa.
Em resumo: "Sonhando Acordado" é um trabalho genial, cuja proposta é demonstrar como o cinema pode ser inventivo e virtuoso tecnicamente, sendo um contra-ponto irônico a simplicidade aparente da execução de seus artifícios - nada de CG é utilizado, tudo é fabricado, tátil, físico, mesmo que feito de papelão. O eficiente roteiro constrói personagens incríveis, passeia gargalhando por um surrealismo exacerbado, envolve a audiência com sua disfuncional história de amor, embaralha idiomas e brinca com o fato... e se torna inesquecível, assim como todo bom filme.
PS: O título nacional "Sonhando Acordado", de Gondry, foi lançado em 2006. Já em 2007 foi lançado outro "Sonhando Acordado" (nome idêntico... santa inteligência) , do diretor Jake Paltrow. Por isso não se confunda, pois o primeiro é infinitamente melhor.