Em "Django Livre", o diretor Quentin Tarantino se renova no exercício de criar o personagem "badass" definitivo, e que agora tem algo a dizer.
Quentin Tarantino é um mestre na arte de se contar histórias. E estou falando de histórias memoráveis, improváveis, com diversos personagens interligados que dizem milhões de palavras por segundo, e quase todas elas te fazem pensar, rir e dizer em voz alta goddamn! ou algo do tipo. São tramas que se amarram por aspectos morais, culturais e atos heroicos retumbantes, que elevam ao máximo os níveis de testosterona da audiência. Um estilo cinematográfico que poderia ser catalogado, informalmente (se me permitem) como "fodásticamente badass", pois cult já ficou para trás, o gênero não mais exemplifica a profundidade e talento do diretor.
No entanto, querendo ou não, Tarantino nunca disse muita coisa com seus longas (em um sentido agregador, digamos assim), tendo abordado basicamente temas sobre golpes/planos elaborados, vinganças, mortes e factóides interessantíssimos - tudo bem específico. Mas com o lançamento de "Django Livre" isso mudou: a história do negro que se torna um caçador de recompensas, e que tem como meta crucial de sua sofrida existência resgatar a esposa Broomhilda, é uma das mais brutais e enfáticas exposições da escravidão americana pré-Guerra Civil - época em que a simples visão de um homem de cor andando a cavalo era algo assombroso.
Diante de um roteiro original novamente inspirado, percebemos que o diretor nos induz a refletir sobre o tema racial a todo instante, até mesmo com seus minuciosos detalhes. Por exemplo: quando Django dá um belo gole em um copo de cerveja, o texto não nos diz se aquele foi o primeiro gole da vida do negro, ou pelo menos o primeiro em muitos anos. Ainda sim, percebemos o prazer inédito em sua expressão – um gesto simples que demonstra um fragmento, obviamente irrisório, das privações impostas a estes meros serviçais.
Porém, em tantos outros momentos, Tarantino é extremamente explícito em sua mensagem, o que possivelmente faz de "Django Livre" o seu mais violento trabalho até hoje - não só pela quantidade absurda de sangue derramado (litros e mais litros que explodem com veracidade exacerbada), mas também pelo impacto psicológico das cenas mediante o tema delicado. O diretor e roteirista não usa de meias palavras para descrever a brutalidade, pois de outra forma não seria brutalidade, não é mesmo?
O filme de Tarantino escolhe ser polêmico pelo simples fato de ser realista. Ele não poupa negros vira-casacas, resumidos pelo irritante personagem Stephen, vivido por um desprendido Samuel L. Jackson. A exploração dos escravos como objeto de entretenimento em lutas sangrentas é outro fator que se mostra revoltante. A produção ainda levanta questões importantes como: porque os escravos não se rebelavam? Não revidavam anos de castigos e abusos? A discussão propõe então uma análise da personalidade destes homens, que nasceram de uma linhagem submissa, e que por natureza também eram assim. Eles não conseguiam se enxergar dignos daquilo que nunca tiveram, concordando fatidicamente com sua posição. Mas como disse o memorável personagem de Leornardo DiCaprio, o presunçoso e sádico Calvin Candie: "Entre 10 mil escravos, sempre surge um negro certo. E você garoto brilhante (Django), você é um deles!".
Todos sabem que a direção de Tarantino é movimentada por influências, e que ele sempre enfatizou a vontade de produzir seu próprio faroeste. Dono de um conhecimento cinematográfico mítico, o americano fez questão de homenagear o gênero consagrado por mestres como Sergio Leone, sendo sua mais visível referência a ilustre participação do italiano Franco Nero, primeiro "Django" que apontou no horizonte dos cinemas em 1966 - um representante máximo do universo Spaghetti Western italiano.
Assim como fez em "Bastardos Inglórios", o diretor optou por certa áurea européia com sua fotografia, fato que se contrasta com a temática yankee e as diversas trucagens da fita - como os closes contemplativos cheios de zoom in & zoom out, artifício que antes enfatizava drama e tensão, mas que hoje, pelas mãos de Tarantino, oferece um humor contraversivo e praticamente metalinguístico.
A construção narrativa de "Django Livre", com suas cenas milimetricamente programadas, é uma proeza estilística de beleza singular (e os elogios por aí vão). Mas é na interpretação do elenco que moram as qualidades exponenciais da obra. O personagem alemão Dr. King Schultz, interpretado com a dedicação de um maestro pelo genial Christoph Waltz, é sem dúvida uma das mais elaboradas crias de Tarantino. Seu carisma manipulador e sua inteligência abismal lhe faziam reinar em meio aos ignorantes de pescoço vermelho do Sul dos Estados Unidos. A personalidade de Jamie Foxx como o protagonista Django também é digna de muito respeito. E completando, Leornardo DiCaprio entrega o primeiro vilão de sua carreira, o já citado Calvin Candie, um tipo cheio de defeitos e qualidades – todas ligadas única e exclusivamente ao exercício de ser um cretino pomposo.
Talvez o único deslize (contraditório, como você já vai perceber) esteja na trilha sonora. Gostaria de primeiramente dizer que ela é épica (por mais que o termo possa estar saturado, ele descreve bem minha concepção sobre a trilha). Devido ao fato de "Django Livre" ser um longa histórico, é maneiro ouvir temas contemporâneos (como gangsta rap’s) surgindo a todo o momento. Só que é exatamente aí que mora o problema: eles surgem a todo santo momento, sendo que a produção ganha, em algumas ocasiões, um feeling de videoclipe - tenho certeza que se Tarantino ouvisse isso ele provavelmente imaginaria uma morte violenta para minha pessoa, o que seria uma honra. Essa constante utilização de excelentes músicas (vale enfatizar a palavra excelente apenas com o nome Johnny Cash) é de longe um erro - na verdade se torna uma peculiaridade do filme. Mas creio que em algumas cenas certo silêncio seria bem vindo.
Em resumo: com "Django Livre", Quentin Tarantino adiciona mais um extraordinário personagem "badass" a sua extensa lista. Seu desejo de conduzir um faroeste se deu de forma relevante quando o mesmo resolveu tratar do tema escravidão não com cuidado, mas sim com uma honestidade visceral, que enfatiza a mensagem sem se submeter a sanções. Como diretor, ele alcança novamente um apuro técnico invejável, como roteirista, entrega um trabalho de qualidades extremas. O elenco atua de maneira inspirada, e o resultado se mostra nada menos do que prodigioso. Daqui há 50 anos, quando alguém quiser assistir a um clássico do faroeste, "Django Livre" com toda certeza será um dos mais indicados.
PS: Algumas das obras que serviram de referência para "Django Livre" são: "Sabata, o Homem que Veio para Matar" e "Sabata Adeus" (1969 e 1970, ambos de Gianfranco Parolini),"...E Agora Me Chamam 'O Magnífico'" (1972, de Enzo Barboni), "Sangue nas Montanhas" (1966, de Carlo Lizzani), "Il Mio Nome è Mallory... M Come Morte" (1971, de Mario Moroni), "Django Mata em Silêncio" (1967, de Massimo Pupillo), "Django e Sartana no Dia da Vingança" (1970, de Demofilo Fidani e Diego Spataro), " A Pistol for Django" (1971, de Luigi Batzella), e obviamente o já citado "Django" (1966, de Sergio Corbucci).
Django Livre/ Django Unchained: EUA/ 2012/ 165 min/ Direção: Quentin Tarantino/ Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, Samuel L. Jackson, Walton Goggins, Dennis Christopher, Franco Nero, James Remar