O Voo (Flight)

Em "O Voo", Robert Zemeckis conta a história de um herói alcoólatra que não busca uma segunda chance. 

Já na primeira cena de "O Voo", Robert Zemeckis faz questão de mostrar que deixou para trás aquele estado pueril em que se encontrava nos últimos tempos. O diretor, que tem no currículo obras famosas como a trilogia "De Volta para o Futuro", "Forrest Gump, o Contador de Histórias" e "O Náufrago", havia se jogado de cabeça nas animações de captura de movimento, lançando consecutivamente três delas: "O Expresso Polar", "A Lenda de Beowulf" e "Os Fantasmas de Scrooge", todos filmes visualmente virtuosos, mas que não agradaram muito a crítica mundial.

Voltando para cena em questão, vemos logo de cara um nu frontal, uma discussão insalubre sobre os entreatos vingativos de um ex-casamento, e também o consumo de maconha e cocaína. Ou seja, neste início Zemeckis estabelece o tom da obra, a mais madura de sua carreira, enfatizando também que nele, como cineasta, ocorreu uma espécie de transformação - necessária de fato, pois no final das contas este foi seu melhor lançamento nos últimos 13 anos. Mudanças são sempre bem vindas, algo que o próprio "O Voo" sublinha claramente.

A história gira em torno de um acidente aéreo surpreendente, que poderia ter se transformado em uma tragédia se não fosse pela perícia do piloto Whip Whitaker (Denzel Washigton). Para salvar a vida de sua tripulação, o cara fez o possível e o impossível para aterrizar seu avião com segurança, e tudo isso algumas horas depois de consumir aquela cocaína de que falei logo acima. Na verdade, Whitaker é alcoólatra, daqueles que não assumem o vício, e no dia do acidente ele também estava bêbado.



É em meio a esta contraditória realidade que "O Voo" situa sua trama. Mesmo bêbado e drogado, o piloto foi capaz de realizar uma manobra tão improvável que nem mesmo 100 pilotos conseguiram reproduzi-lá em voos simulados. Um verdadeiro milagre. Ainda sim, com os exames de sangue coletados após o acidente servindo de evidência, o caso poderia se desdobrar em um julgamento, e o piloto - que foi clamado herói - teria de enfrentar um tribunal.

O excelente texto foi talhado por John Gatins, que até então só havia roteirizado filmes fracos como "Gigantes de Aço" e "Hardball - O Jogo da Vida". Porém aqui seu talento se revelou. Em o "O Voo", Gatins faz do acidente um interessante palco para análises técnicas, esmiuçando todos os procedimentos por trás de catástrofes do tipo. Paralelamente, ele amarra a vida de pessoas desarranjadas por suas urgências, expondo com realismo os males do alcoolismo e o reflexo do mesmo naqueles que estão próximos ao problema (vale ressaltar que o roteirista não trata o tema comumente, e injeta doses politicamente incorretas no argumento)

Levantando alguns questionamentos sobre a crença em Deus e seus milagres, Gatins fala sobre a "segunda chance", aquela que refaz corpo e mente, e apesar da opção estar a um passo de distância, é a dificuldade de aceitá-la como algo necessário que faz com que as coisas se compliquem de maneira quase irremediável - o roteiro original está concorrendo ao Oscar 2013, merecidamente.



E com uma boa história em mãos, Zemeckis não decepciona. Carregado de muita auspiciosidade, o diretor promove uma sequência inicial memorável (manhã do acidente), e no decorrer da trama consegue ser dramático na medida exata, engraçado de forma desprendida, e potencializa com eficiência o rendimento de seu elenco. 

A produção técnica chama atenção, em especial a trilha incidental de Alan Silvestri, que conduz gentilmente a fita rumo a seu resultado positivo - as canções escolhidas para a trilha sonora também são de muito bom gosto, como as incríveis "Gimme Shelter" e "Sympathy for the Devil" (ambas da banda The Rolling Stones), e a catártica "Under the Bridge", do Red Hot Chili Peppers.

Como destaque do elenco temos Denzel Washington, que é talvez o interprete com mais cacoetes que Hollywood já viu. No entanto, é impossível não elogiar sua autonomia e controle em cena, realmente um trabalho profundo e comovente. Depois de uma sequência de fitas medíocres, ele encontra em Whip Whitaker um personagem que lhe cai como uma luva - por sua atuação, Washington também foi indicado ao Oscar 2013. 

No cast estão ainda os ótimos Don Cheadle Bruce Greenwood como os defensores Charlie e Hugh, John Goodman, que vive Harling, um alucinado fã de Stones, e a atriz Kelly Reilly, que demonstra empenho com sua melancólica Nicole - a garota acaba se unindo ao piloto como em um ato de redenção, e a relação deles serve bem ao propósito de explorar as dinâmicas destrutivas do vício em álcool e outras drogas.

No final, depois da recepção positiva de "O Voo", Robert Zemeckis com certeza deixará suas animações aventurescas de lado para se focar em dramas da vida real. Mudar definitivamente faz bem a todos.




















O Voo/ FlightEUA/ 2012/ 138 min/ Direção: Robert ZemeckisElenco: Denzel Washington, Tamara Tunie,
John Goodman, Kelly Reilly, Don Cheadle, Bruce Greenwood, Melissa Leo

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