Poucos são os filmes desconfortáveis, daqueles que incomodam, que fazem pensar e exigem que certa revolta seja exteriorizada de alguma forma pouco amena, como um palavrão, por exemplo. Em "A Caça", o diretor Thomas Vinterberg elabora uma história tão metodicamente cruel que é impossível não se sentir afetado por ela.
Como protagonista temos Lucas (interpretado de maneira abismal por Mads Mikkelsen). O homem trabalha como professor em uma creche, e a alegria dos pequenos provavelmente lhe ajuda a enfrentar o período difícil que enfrenta em sua vida - ele acabara de se separar e perder a guarda do filho.
Por motivos que são claramente fundamentados pelo auspicioso roteiro de Tobias Lindholm (em parceria com Vinterberg), uma criança de cinco anos, da classe de Lucas, insinua para a diretora da escola que o professor lhe mostrou as partes íntimas. Ela mentiu.
E protegido pela crença de que "crianças não mentem", o fato se torna instantaneamente verdade, e a vida de Lucas desmorona rapidamente. Seus companheiros de trabalho, amigos de infância, basicamente todos os habitantes da pequena cidade em que mora lhe julgam culpado, mesmo sem prova cabal, apenas sustentados pelas palavras de uma criança que nem ao menos entende direito o que está acontecendo - a garota tenta desmentir o que disse, mas o ato é interpretado como negação, e encarado como evidência que comprova o suposto abuso.
Fazendo então um inteligente paralelo ao costume da Europa de se matar animais por esporte, Lucas se torna um alvo, e uma caçada a sua dignidade e integridade física é ferozmente iniciada. Naquele momento, independente do que o julgamento do caso determinasse, ele provavelmente seria tachado como um pedófilo para o resto de sua vida - o que condenaria não só ele, mas também seu filho, às moléstias que o título invoca.
O dinamarquês Thomas Vinterberg (grande amigo de Lars von Trier) sabe bem como incomodar sua audiência. Seu primeiro trabalho de destaque foi o Dogma 95 "Festa de Família", em que vemos um pai sendo acusado de estupro pelo filho na frente de diversos convidados, e consequentemente temos a desintegração destes e de todos os personagens ao redor. Em "A Caça", o diretor optou por uma abordagem um pouco mais sutil, que consegue apresentar seus fatos de maneira comedida, "revoltando" em momentos chave, dando assim um ritmo mais conciso a história, não forçando e causando desconforto em demasia ao público, apenas o suficiente.
Em resumo: Com o apoio de uma equipe de atores excepcionais em totalidade, "A Caça" demonstra a tênue linha que separa certo e errado. O roteiro exemplar da obra exige uma reflexão profunda, pois investiga dois lados extremamente distintos e concretos de um mesmo fato. Obviamente somos compelidos a nos ressentir pelo que acontece com Lucas, mas diante de "provas irrefutáveis", o que você pensaria de um homem que cometeu abuso infantil? Ainda mais se tratando da filha de um amigo próximo a você?
A pequena mentira da criança, unida à violência humana - basicamente instintiva -, gera então o mais honesto retrato da injustiça, em que, teoricamente, ninguém é verdadeiramente culpado. Apenas a exteriorização deste ódio se torna abominável, de uma forma ou de outra. Altamente Recomendado.
A Caça/ Jagten: Dinamarca/ 2012/ 115 min/ Direção: Thomas Vinterberg/ Elenco: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkoop, Lasse Fogelstrøm, Susse Wold, Anner Louise Hassing, Lars Ranthe, Alexandra Rapaport, Ole Dupont